Por Felipe Figueiredo do podcast Xadrez Verbal
No mais recente podcast do Xadrez Verbal foi comentado o tema
do novo código penal boliviano, que é alvo de diversos protestos. Muitos
ouvintes pediram para que o assunto fosse disponibilizado também em separado,
para que pudesse ser melhor compartilhado e consultado, e é para isso que este
texto servirá, incluindo alguns complementos. Dentre os críticos da legislação
estão as igrejas evangélicas e parte da Igreja Católica Apostólica Romana, que
alegam que a atividade religiosa, a conversão e o proselitismo tornariam-se
proibidos, puníveis com prisão, o que até inviabilizaria a atividade dessas
igrejas. Esse aspecto das críticas chegou ao Brasil e disseminou-se rapidamente
em canais também ligados à algumas igrejas, assim como páginas de caráter
anti-esquerda em geral. A questão é que o sensacionalismo e distorção desse
lado brasileiro da fronteira não transmitem os eventos e as discussões de
maneira honesta. Algo que o homem mais poderoso do mundo atualmente chamaria de
“fake news”.
Bolívia
Duas breves contextualizações. A primeira é a de
que Evo Morales é uma figura política, hoje, além de contestado dentro de seu
próprio país, isolado no continente. O único regime sul-americano que possui
relações próximas com La Paz é o de Caracas, especialmente depois do racha
entre Rafael Correa e Lenin Moreno no Equador. E por qual motivo contestado
dentro da Bolívia? Vários motivos, mas o principal é o fato de ele ter
declarado que irá buscar uma terceira reeleição para um quarto mandato. Mesmo
após a população boliviana ter explicitamente rejeitado isso em referendo.
Usando uma manobra jurídica, em uma corte dominada por seus apoiadores, que
intencionalmente nubla a diferença entre direitos humanos e direitos civis, Evo
Morales poderá ficar dezenove anos consecutivos no comando de um país
presidencialista. Então, a mobilização de opositores ao seu governo é cada vez
maior e adota diversas bandeiras.
A segunda é de que a Bolívia é um país de
população esmagadoramente cristã. Cerca de 76% da população se
declara católica, com outros 17% adeptos do protestantismo, para um total de
93% da população identificando-se como cristã. O país, assim como o Brasil, é
marcado pelo sincretismo religioso, com aspectos religiosos nativo-americanos
presentes. A questão aqui é: uma lei que praticamente proibisse o cristianismo
ou a atividade religiosa seria um problema eleitoral, um problema social e
gênese de protestos certamente maiores e mais intensos.
A polêmica sobre a lei
Um esclarecimento deve ser feito em relação ao
dito no podcast: o novo código penal não está em vigor, como dito, mas já foi
sim aprovado pelo parlamento boliviano, em dezembro de 2017. E qual seria o
problema do projeto legislativo? Pela repercussão brasileira, talvez uma
mistura de ingenuidade em peças jurídicas com falsos cognatos em castelhano, e
uma dose de um dos problemas das redes sociais, que é o compartilhamento de
materiais rasos sem a devida checagem. No caso, estou falando, é claro, de
páginas de jornalismo, comunicadores referência na área (como youtubers de
grandes canais), etc.
A lei pode ser acessada na íntegra por quem desejar. Em seu Capítulo III,
Seção I, Artigo 88, a
lei diz, no original:
ARTÍCULO 88. (TRATA DE PERSONAS) I. Será
sancionada con prisión de siete (7) a doce (12) años y reparación económica la
persona que, por sí o por terceros, capte, transporte, traslade, prive de
libertad, acoja o reciba personas con alguno de los siguientes fines:
Então lista catorze situações, com a décima
primeira grafando, no original: 11. Reclutamiento de personas para su
participación en conflictos armados o en organizaciones religiosas o de culto;
Primeiro ponto. Um artigo legislativo não é
estanque em sua leitura, deve ser levado em consideração o preâmbulo da lei e
seus trechos internos. No caso, o Capítulo III trata de crimes contra a
dignidade e a liberdade humana. A seção I, contra a dignidade. Segundo ponto, o
termo “trata de personas” pode ser enganador, especialmente para quem acredita
que entende castelhano. Os famosos falsos cognatos. O trecho foi traduzido com
a ajuda de um amigo professor do idioma, que enviou a referência para a palavra
“trata”.
De acordo com o Diccionario de la lengua
española da Real Academia Espanola, Edición del Tricentenario,
Actualización 2017, “TRATA – De tratar ‘comerciar’. 1. f. Tráfico que consiste en
vender seres humanos como esclavos.”. Ou seja, esse artigo se refere ao
tráfico, venda, comércio, privação de liberdade de seres humanos, e lista as
finalidades que abrangem esse crime, desde mendicância forçada até o falsamente
polêmico inciso 11. Uma pessoa poderá ser presa caso comercie, escravize,
compre ou venda uma pessoa, privando-a de sua liberdade em prol de um conflito
armado ou de organizações religiosas. Uma conversão forçada de uma comunidade
indígena, por exemplo.
Talvez seja interessante mencionar que o mesmo
código penal considera um agravante para os crimes de furto, roubo e dano ao
patrimônio caso essas atividades sejam realizadas contra locais religiosos ou
de culto. No caso do furto, um furto “comum” é punido com reparação econômica e
apenas os furtos com agravante são punidos com prisão. Ou seja, uma pessoa que
furte uma igreja na Bolívia seria presa, com uma pena maior.
Por qual motivo temos protestos? A lei é
perfeita?
Longe disso, ela já foi modificada e enfrenta diversos outros
protestos. Os modificados foram os 205, após greves e protestos de médicos, e o 137, após protestos e greves de motoristas.
Ambos os artigos permitiriam a prisão de profissionais por erros médicos ou
acidentes, responsabilizados individualmente.
Outros artigos sob protesto são o aumento do
limite de dosagens de entorpecentes permitidas para uma pessoa ser
caracterizada como “microtraficante”, uma pena mais branda; associações de
moradores protestam contra os artigos 293 e 294, que tornariam mais difíceis a
organização de protestos, podendo criminalizar manifestações; e os artigos 309,
310 e 311 são alvos de protestos de jornalistas, tema também comentado no podcast.
Os artigos citados tipificam os crimes de injúria, calúnia e difamação, e
profissionais de imprensa alegam que tais artigos protegerem figuras políticas
de matérias jornalísticas críticas. Além disso, o artigo 246 criminaliza o uso
de dados pessoais ou “informação confidencial” que afetem a “imagem e a
dignidade de uma pessoa”. Em tempos de vigilância em massa, podemos pensar em
muitos casos no qual esse artigo protegeria a vítima, mas também casos em que
protegeria figuras políticas de, por exemplo, um vazamento de informação tida
como confidencial. Como planilhas de empreiteiras.
E os cristãos bolivianos que
protestam?
Embora a especulação do falso cognato não seja
possível, a articulação opositora ao governo de Evo Morales e seu partido (que
domina o parlamento) contribui na explicação. Ainda mais, recentemente o
governo boliviano alterou as leis sobre a criminalização do aborto, autorizando o procedimento em um
número maior de casos. Obviamente, essa mudança legislativa que liberalizou o
aborto em certas situações colocou o governo e grupos religiosos em choque. Os
protestos contra o atual projeto do código penal são, de certo modo, uma
extensão das críticas recente no tema do aborto. O clima de animosidade
exacerba o que, para alguns juristas bolivianos, em um painel
de uma das principais emissoras bolivianas, seriam até mesmo leis “mal
redigidas”.
Na Bolívia, hoje, dia 21 de Janeiro de 2018, Evo
Morales anunciou que o novo código está em suspenso até que diálogos com as camadas afetadas da
sociedade resolvam os pontos afetados. A conclusão sobre a repercussão do caso
no Brasil, entretanto, é a de que ela é sensacionalista e desinforma. O
contrário do que deveria ser feito. Alguns mais esperançosos podem desejar
retratações dos veículos e páginas.