sábado, 9 de maio de 2020

A CULPA É DA IMPRENSA por Eduardo Bueno


Foi em 1886 que a coisa explodiu. Convicto de que a causa era nobre e as injustiças flagrantes, o voluntarioso militar decidiu tomar uma atitude, por mais intempestiva – e ilegal – que ela pudesse ser. Mas não optou por ferro e fogo: ao invés do fuzil, preferiu manipular as palavras. O recado foi claro: os soldos eram baixos, a tropa estava inquieta, as pressões eram muitas. O Brasil desprezava seus quarteis. Um governo civil sempre seria incapaz de entender as agruras da caserna, as permanentes angústias da soldadesca. Onde a insatisfação iria desembocar?
Era preciso dar um basta!         
A gota d´água partira, como sempre, do parlamento. O projeto proposto pelo Marquês de Paranaguá era inaceitável: a contribuição obrigatória para o montepio dos militares, com o desconto direto na fonte, configurava um abuso, uma ingerência, uma expropriação nos soldos já tão vis. Um repetição, aliás, do “pavoroso egoísmo, fundamentalmente impatriótico da classe política”,  que,  durante a Guerra do Paraguai, “se refestelava enquanto o sangue brasileiro vertia aos jorros nos charcos paraguaios”.
Foi justo esse o trecho mais explosivo do manifesto que o tenente-coronel Antônio de Senna Madureira fez publicar em jornais da Corte.  Os “casacas”  – como os civis em geral e os políticos em particular eram chamados nos quartéis – ficaram furiosos. E como a lei vetava aos militares a prerrogativa de se manifestar através da imprensa, Senna Madureira foi punido com prisão administrativa.  No ano seguinte, ao prestar ruidosa homenagem ao jangadeiro Francisco  do Nascimento, o  heroico e lendário Dragão do Mar, que se recusara a transportar escravos, acabou sendo punido outra vez e foi transferido do Rio de Janeiro para Rio Pardo (RS).
No Sul, Senna Madureira aproximou-se do incendiário Júlio de Castilhos, dono do jornal A Federação, ferrenho porta-voz do movimento republicano. Então, em 3 de setembro de 1886, usou o jornal para defender o capitão Cunha Matos, que havia denunciado um caso de corrupção em quartéis do Piauí e também fora punido. Quando o ministro da Guerra, Alfredo Chaves, determinou nova punição a Senna Madureira, o então brigadeiro Deodoro da Fonseca, comandante em armas e presidente interino da província do Rio Grande do Sul, recusou-se a cumprir a ordem. Júlio de Castilhos escreveu então o artigo que foi como “fósforo no paiol de pólvora”, deflagrando de vez o que passaria para a história como a “Questão Militar”. Deodoro foi afastado do cargo e transferido para o Mato Grosso. De passagem pelo Rio de Janeiro, fundou o Clube Militar, do qual virou o primeiro presidente.
Magoado com o imperador, do qual fora amigo, Deodoro abandonou seu posto no Mato Grosso sem dar maiores explicações e retornou para o Rio.  Ao raiar do dia 15 de novembro de 1889, mesmo doente, o marechal saiu da cama. E deu no que deu.
Quase um século depois, em setembro de 1986, um obscuro capitão do Exército, que servia em Deodoro, no Rio, convicto de que a causa era nobre e as injustiças flagrantes, decidiu tomar uma atitude, por mais intempestiva – e ilegal – que ela pudesse ser. Mas não optou por ferro e fogo: ao invés do fuzil, preferiu manipular as palavras, embora não fosse seu forte. Mas o recado foi claro: os soldos eram baixos, a tropa estava inquieta, as pressões eram muitas. O Brasil desprezava seus quarteis. Um governo civil sempre seria incapaz de entender as agruras da caserna, as permanentes angústias da soldadesca. Onde a insatisfação iria desembocar? Era preciso dar um basta!
Por isso, o dito capitão, que atendia pelo apelido de “Cavalão”, publicou na revista Veja um artigo com o título “O salário está baixo”. Foi preso por 15 dias. Em 1988, acusado de planejar ataques à bomba, Jair Messias Bolsonaro foi mandado para reserva. Elegeu-se vereador em novembro daquele ano. E deu no que deu.

[Texto de Eduardo Bueno, publicado em sua coluna semanal, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre]

Nenhum comentário:

Postar um comentário